domingo, 16 de outubro de 2011

A sabiá laranjeira


"A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá
mas não pode medir seus encantos.
A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem
nos encantos de um sabiá.
Quem acumula muita informação perde o condão de
adivinhar: divinare.
Os sabiás divinam." (Manoel de Barros)


Essa é a história de uma amizade especial [Fato]. 
A amizade de uma garota de seus 15 anos e uma sabiá laranjeira. Sabiás são bichinhos arredios, territorialistas e nunca, nunca se conformarão, se presos.
Criança eu nunca gostei de passarinho na gaiola e, surgindo a oportunidade, desarmava alçapões sorrateiramente. O coração disparava e se deliciava em boicotar os planos alheios. 
Confesso que, às vezes, eu mesma armava os alçapões só pra ver uma pombinha presa lá dentro. Nessas ocasiões, a minha felicidade era soltá-las, tão logo estivessem caído na armadilha. Eu, então, poderia ser heroína delas! O que era Fabuloso!
Mas a história que trago hoje aconteceu em minha adolescência e, para mim, uma das que levarei por toda a vida, para os filhos e netos e, se vocês quiserem, para os seus.
Lembro do meu avô chegando em casa com uma sabiá laranjeira dentro de uma gaiola. Passarinha brava, se debatia de todos os lados. Ninguém em casa gostou de ver, mas meu vô tinha paixão em sabiás. Não, eu não esperei que dormissem para soltá-la. Eu não teria coragem. Meu avô ficaria triste e ela já era adulta quando ele pegou e, talvez, nem soubesse mais viver sozinha. Ela estava inconformada, mas eu me conformei. Era meu vô passar perto, que a bichinha não parava na gaiola.Toda vez que ele ia tratar dela, começava o alvoroço.
Foi que passou um tempo (que não sei precisar)que, num desses ataques de rebeldia, meu avô se chateou com a pobre e a soltou. 
Eu fiquei satisfeita, em parte. Mas cheguei a ficar com pena também. Solta nesse mundão depois de tanto tempo?
E numa bela manhã de sol (literalmente), reparei que minha cachorra estava tentando alcançar um passarinho que, de longe, não distingui. Eu cheguei mais perto e o bichinho conseguiu escapar (de mim e da cachorra, por assim dizer). Ele voou para a área cimentada em frente ao meu quarto. E, então, eu vi que era ela. Vocês poderiam me perguntar: como você sabia que era ela?
Está certo. O quintal onde eu morava havia um tanto de sabiás. Mas aquela tinha uma marquinha na pata. Inconfundível. Era por causa dessa marquinha que eu achava que ela era uma sabiá mais velhinha e tive pena quando meu vô soltou.
Mas agora, diante dela ali no meu quintal, tão pertinho de mim, eu confesso que fiquei feliz. Peguei ração, potinho de água e coloquei o mais perto possível, mas ainda numa distância respeitável. Me afastei. Ela veio. Comeu, tomou água...Putz, que legal! - eu pensei. Ela estava solta e eu podia alimentá-la!
E isso se repetiu durante um tempinho. Ela vinha, sempre em frente a minha janela e eu seguia o ritual. Dar a comida e me afastar.
Todo mundo em casa soube, mas eu tentei esconder do meu vô, senão com toda certeza ele ia querer a bichinha de volta. Até porque ele já demonstrava sinal de arrependimento. Mas nada poderia ficar escondido dele por muito tempo e, é claro, que quando ele descobriu não deu outra. Ele já vinha com a gaiolinha aberta pro meu lado, me chamando e dizendo "Pega, pega". Aff, era constrangedor! Eu simulava que ia pegar, fazia um estardalhaço pro bicho voar. Assim, eu não magoava ninguém. Era melhor passar por desastrada que trair a confiança dela.
E foi que conforme o tempo passava, mais ela confiava em mim. Chegava tão pertinho e, melhor, me distinguia dentre todos os humanos da casa! Eu chegava da escola e ela vinha dando seu rasante. Agora, ela já não ficava só naquela área onde tudo começou. Ela vinha onde eu estava: na varanda da sala, na área da cozinha...Ai, você pode ter a noção da minha alegria...ela estava solta e feliz. Sempre que ela quisesse tinha água e comida (que minha mãe achou melhor transferir para o murinho da área de serviço). Ela inclusive tomava seu banho diário. Paz, a bichinha estava em paz, solta e renovada. Vi que estava cada vez mais linda e que a marquinha nada tinha de velhice. Era uma sabiá jovem. Era na gaiola que ela era triste.
Mas, então, eu comecei reparar que cada dia que passava ela vinha menos vezes. Chegou a faltar um dia inteiro. A primeira vez que aconteceu, eu fiquei muito preocupada, achando que ela tinha ficado mansa e que o gavião podia ter se aproveitado disso. Mas era justamente o contrário. A bichinha estava começando era voar com as próprias asas. E cada dia ela se afastava mais. Eu entendi. Fiquei feliz por ela e compreendi que esse era o fluxo natural das coisas.
E foi que um dia, eu estava sentada na calçada que tinha no quintal de casa e ela chegou e ficou do meu lado. Eu estranhei porque não havia nenhuma comida ali. A comida, como sempre, estava no murinho. Eu sentada e ela pertinho mesmo (imaginem!) como que "sentada" do meu lado na calçada. Eu não ousei me mexer para não assustá-la. E ela ainda ficou um tempinho ali do meu lado, quietinha também. Que sensação boa, meu Deus! Pensar que ela quis passar um tempinho comigo.
E depois disso, eu não a vi mais.
Eu nunca saberei contar essa história sem me emocionar. Uma das coisas mais lindas que experimentei.Uma despedida, ela me deu. Um coração livre, uma amizade eternizada.



                 

Nenhum comentário:

Postar um comentário