segunda-feira, 14 de novembro de 2011

a amizade clandestina

O nome dela era Clarice. Como a Clarice de "Felicidade clandestina", de forma que o título desta estória não foi, então, uma coincidência.
Aos 12 anos, Clarice estava na 6ª série - como se falava não tão antigamente - e nenhum amigo que fizera na quinta estava na lista da turma do primeiro dia de aula. Viria, então, todo o difícil processo (para ela) de ser o que chamamos de sociável. Nada que a professora não resolvesse escalando duplas improváveis de trabalho. Mas Clarice não estava triste com a situação. Afinal, as duas coleguinhas de quem tinha se separado eram muito "pra frente" para os conceitos rígidos de Clarice. Tudo, assim, havia sido resolvido em uma lista de primeiro dia de aula. Clarice estava livre.
A calça jeans do ano anterior tinha sido substituída por uma tal "bermuda ciclista" e incomodava Clarice ver suas pernas finas e brancas de "fora", somadas àqueles tênis pretos engraxados que só se vendo. Foi então que a professora entrou na sala com um sorriso meio de lado e a menina ficou satisfeita em ver que era a antiga professora de geografia: a da letra bonita, das unhas bem feitas, das palavras certinhas e que dava vistos cobrando um caderno sempre caprichado. O suspiro conseguiu sair do peito da menina, pela primeira vez no dia e ela ainda estava pensando se usaria caneta preta ou vermelha pra margem do caderno quando o menino entrou. Clarice, mais tarde, descreveria aquele sentimento que invadiu seu estômago infantil de "emoção e contentamento". Ela também o descreveria assim: “ele tinha os ombros meio inclinados para frente (igual toda gente tímida), os cabelos se encrespavam em pequenos cachinhos castanhos, sua boca era rosa como de um bebê e seus olhos eram...redondinhos que só vendo e muito pretinhos...e ah, ele tinha uma pinta do lado esquerdo do rosto...do tamanho de um confete de papel”. Ele sentou três cadeiras atrás dela e, nesse dia, ela odiou ser a primeira da fila. Ele era o amigo que Clarice queria ter. Dali por diante tudo seria isso: o que eles fariam juntos. E pensou em pedir um dicionário para iniciar a conversa, mas ele estava com a cabeça baixa quando ela virou e ninguém entenderia porque  ela faria tal pedido para um colega três cadeiras atrás dela. Depois pensou em fazer esforço telepático para a professora escolher que sentassem juntos para fazer a tarefa. Mas a tarefa foi individual. E depois pensou em calcular a força necessária para deixar seu lápis cair no chão bem ao lado dele. Pensou e fez, mas caiu ao lado da menina loirinha, que foi sua amiga pro resto do ano. Não que Livinha fosse chata, pelo contrário, era um amor de menina, mas seu alvo mais precioso de amizade era ele. E, a propósito, o nome dele: Eduardo. Os dias se seguiram e mais Clarice planejava: os dois fazendo exercícios de matemática, os dois andando de bicicleta, os dois andando pelas ruas da cidade atrás de um presente para a mãe dele, os dois aprendendo uma música em inglês e fazendo primeira e segunda voz, ela contando para ele que estava gostando daquele guitarrista da sétima série, ele contando para ela que gostava da sua prima mais velha. Mas sua amiga era Livinha. Ao mesmo tempo que ansiava o dia que poderia conversar com ele, começou a pensar que, talvez, era melhor deixar do jeito que estava. Ela o via de longe (a três cadeiras da sua), ele lia baixo quando a professora pedia, mas não errava uma só vírgula, ele tinha três amigos bobos e, de vez em quando, gargalhava com eles como todos os meninos terráqueos. Pobre Eduardo, aposto que se sentia sozinho como eu – pensava Clarice.
E então, numa terça – que mais tarde Clarice chamaria de fabulosa - ele passou pela mesa dela e falou: Desenho bonito, você faria um na minha mochila? Foi a primeira vez que conversaram, quer dizer, que ele falou com ela, porque de Clarice saiu um “” que era mais tímido que sei lá o quê. “Pode ser no recreio?” ele perguntou e ela, presumivelmente, soltou um “”. Foi que ela levantou o rosto e viu, assim de pertinho, o sorriso de seu amigo clandestino: dentinhos retos e brancos. Ela deu seu sorriso de lado e pensou: “eu não quero mais ser amiga dele”. Ela sabia que construiria uma redoma para ele como o pequeno príncipe fez com a flor. E que choraria dos olhos ficarem inchados se alguém o magoasse e que não suportaria a vida quando ele fosse viajar nas férias. Pobre Clarice sofria antecipadamente por um candidato a amigo perfeito. 
Nunca o recreio fora tão ansiado! Chegou a pensar em dizer à professora que estava morrendo com cólicas e que precisava ir embora antes que o pior acontecesse, mas o sinal bateu e com ele subiu-lhe uma coragem de heroína: desenharia na mochila dele, passaria seu telefone para ele, conversariam a tarde inteira. Ela esperou e Livinha desceu para comprar o lanche. Faltavam sete minutos para bater o sinal, contados no seu relógio de ponteiros, quando o garoto apareceu na porta, como quem volta pra buscar alguma coisa. Ah, o desenho! Ele falou disparando o coração da menina. Pobre Clarice...suas mãozinhas tremiam que me dava pena de ver... Ele veio trazendo a mochila até ela e timidamente falou que não tinha problema se não desse. Ela deu seu melhor sorriso ao seu melhor amigo e ele sorriu também. Toda Clarice estava agora nas mãos dela, desenhando o menino com grandes fones de ouvido, de cuja boca saía Lucy in the Sky with Diamonds. O sinal bateu com um mui-to ma-nei-ro saindo da boca do menino Eduardo. Olhos fixos no desenho, voltava pra sua carteira a três carteiras da dela. A professora anunciava o teste e o mundo voltava. Clarice, como sempre foi a última a sair da sala e não viu Eduardo. Mas o dia seguinte chegaria e ah...ele pularia para a carteira ao lado dela lançando Bruna Cebolão pra lua!Per-fei-to! Mas, no dia seguinte Eduardo não apareceu. Nem no próximo e nem a semana inteira. Os três colegas bobos foram incumbidos da trágica notícia: Eduardo foi morar com o pai em Londres e deixou um cachorro chamado Ramones. Fim do bimestre. Clarice chorou e Livinha a consolou dizendo que só nas férias iria pro Nordeste. E, então, Clarice descobriu Livinha e foram amigas desde sempre.
E Eduardo escreveu um postal para o endereço da escola, com p.s. entregar a Clarice da 6ªsérie A. Tinha os meninos de Liverpool na Abbey Road e atrás escrito em letra de forma “Oi Clarice, não deu tempo de te agradecer naquele dia, mas adorei o desenho. Ah, infelizmente não pude trazer meu cachorro pra cá. Acho que ele adoraria ser seu amigo também. O nome dele é Ramones. Um abraço de seu amigo Eduardo”.
Vocês podem imaginar a euforia da Clarice com “ser seu amigo também” e “um abraço do seu amigo Eduardo”?
E essa passou a ser a estória de Clarice, Eduardo, Livinha e Ramones.
Clarice e Eduardo nunca mais se viram, mas as cartas que vieram tinham de tudo: os dois fazendo exercícios de matemática, os dois andando de bicicleta, Eduardo andando pelas ruas da cidade atrás de um presente para a mãe dele, a namoradinha Abbey do Ramones, letras dos Beatles, ela contando para ele que estava gostando daquele guitarrista fora de série e ele contando para ela, é claro, que gostava da sua prima mais velha.